domingo, 16 de agosto de 2015

Areias do tempo
 
                                       Cláudio Hermínio

   Ontem resolvi deixar para trás os sapatos e os chinelos que comprei com tamanho zelo. Caminhei alguns quarteirões e tentei fazer as pazes comigo e com o mundo. Foi quando me dei conta de que algumas histórias, por mais que tenham sido vividas, nos trazem lembranças e voltam como bumerangues arremessados de forma brusca. E é com o olhar de uma criança que conto esta história.
   A irmã de minha avó materna, uma mulata brejeira habituada a se vestir com chita, um tecido de algodão estampado em cores, veio em minha direção com passos delicados e um objetivo, ensinar-me as primeiras letras. Sua voz mansa acalmava-me quando me perdia ao soletrar as vogais e as consoantes. Às vezes, me distraía ao olhar para o seu coque frontal, pois achava estranho, mas aos poucos fui me acostumando, mesmo porque usar coques era um hábito corriqueiro da família Freitas.
   Contam alguns familiares que na juventude teve uma paixão tórrida por um rapaz, mas não foi correspondida. E a forma que o pretendido achou para sair de sua vida foi a desculpa de ter escutado de meu avô que ele não tinha profissão e que dois sacos vazios não param em pé. Suponho que depois disso tenha se tornado uma solteirona convicta.
   Sete anos se passaram, percebi então que o brilho de sua face tonara-se fosca. Lembro-me que acabara de completar setenta anos e a lucidez da mente insistia em ir embora, apesar da idade não tão avançada.
   Por inúmeras vezes escutei-a trocar os nomes dos familiares e a chamar pelos entes que já haviam partido...
   Com a saúde debilitada e o corpo tomado por feridas, pude vê-la definhar-se a ponto de mostrar os ossos. E numa manhã de abril alçou voo e nunca mais foi vista, a não ser em meus sonhos, em minha memória e na memória dos meus familiares queridos. Embora os minutos e os segundos fossem uma eternidade para mim, tenho a sensação de tê-los deixado partir vazios e cheio de interrogações. Havia muito o que ser dito, muito a se perguntar e a se questionar.
   Afinal, quem foi aquela mulher? O que guardava em si e para si?
   Hoje, as lembranças vêm como animais de montaria assustados com o ladrar dos cães, ensinando-me que a vida, sem dúvida alguma, é como um rio que deságua no mar sem saber o que vai encontrar.
  



VESTÍGIO

Nos meus sonhos, os unicórnios carregam à note com seus chifres a tiracolo, se passam por Alazões e trepidam lentamente por entre as folhage...